- Simone Veil, um ícone mundial
A França
ficou de luto em junho deste ano de 2017 ao tomar conhecimento do falecimento
de Simone Veil. Judia, sobrevivente do Holocausto, ela ocupou vários postos
governamentais, tornando-se um ícone na luta contra a discriminação das
mulheres. Empenhada em todas as causas em que acreditava, conquistou os
franceses, e sua popularidade ia muito além dos limites da política.
Edição 98
- Dezembro de 2017
A vida de
Simone Veil foi turbulenta. Vivenciou épocas de terror e de luto, assim como de
amor e de vitórias, sempre demostrando uma dignidade e uma seriedade que
incutiam o respeito e admiração de todos em sua volta. Uma pesquisa realizada
em 2010 a indicou como a preferida entre as mulheres da França.
Dona de
uma força de vontade ímpar aliada a um talento intelectual singular, a força de
Simone Veil residia em sua capacidade de adaptação e luta diante dos desafios.
Suas tendências políticas dependiam da causa em que estava envolvida. Convidada
para o programa L’Heure de Vérité (A Hora da Verdade) para revelar suas
tendências políticas, ela se declara “à esquerda em certos assuntos, à direita
em outros”. Ao ser eleita para a Academia Francesa, o escritor Jean d’Ormesson,
escolhido para dar as boas-vindas, disse: “Contra todas as probabilidades, sem
jamais alterar a voz, você conseguiu convencer a todos. Podemos dizer sem
presunção, no coração da vida política, você ofereceu uma imagem moral e
republicana”.
Apesar de
não praticante, Simone jamais negou seu judaísmo. Participou ativamente de
várias organizações de sobreviventes do Holocausto e conquistou o respeito
internacional por sua atuação para a preservação das memórias das vítimas de
Hitler.
Em uma
das primeiras reações à sua morte, o presidente francês, Emmanuel Macron,
declarou esperar que Simon Veil “possa inspirar, com seu exemplo, os franceses
a encontrar o melhor da França”.
Sua vida
A família
Jacob tem suas origens em Bionville-sur-Nied, na região da Lorraine. Seu pai,
André Jacob, era arquiteto de renome, tendo obtido, em 1919, o segundo grande
prêmio de Roma. Ele se casou, em 1922, com Yvonne Steinmetz, filha de um
peleteiro também judeu. Após o casamento, Yvonne abandona seus estudos na
universidade por exigência do marido. Em sua autobiografia, Simone escreveu que
apesar de sua “família ser laica”, “o fato de pertencer à comunidade judaica
jamais foi um problema para mim. Essa condição era altamente reivindicada por
meu pai”.
Após o
nascimento de seus dois primeiros filhos, Madeleine e Denise, o casal trocou
Paris por Nice. Nessa cidade, na Riviera Francesa, nasceram seu filho Jacob e,
no dia 13 de julho de 1927, Simone. Com a crise de 1929, os projetos
arquitetônicos do pai diminuem drasticamente e a família se muda para um
apartamento menor. Sua mãe, Yvonne, começa a fazer roupas de tricô para
famílias necessitadas.
Simone
tinha 10 anos no dia 3 setembro de 1939, quando a França e Grã-Bretanha
declararam guerra à Alemanha nazista que havia invadido a Polônia dois dias
antes. Exércitos alemães invadiram a França em
maio de 1940 e, no dia 14 de junho, tomam Paris. A Itália de
Mussolini, que, no dia 10 de junho, entrara na Guerra ao lado do Terceiro
Reich, invade o território francês.
A França
se rendeu oficialmente no dia 22 de junho, e assina um armistício com Alemanha
e Itália. O país é, então, dividido – o norte e a costa do Atlântico, inclusive
Paris, ficam sob ocupação nazista, enquanto o sul e o sudeste, a chamada Zona
Livre, passam a ter um governo leal à Alemanha, o Regime de Vichy, do marechal
Pétain. E uma área do sudeste fica nas mãos da Itália fascista. Milhares de
judeus refugiam-se na Zona Livre, inclusive Nice, onde viviam Simone e sua
família. Em 11 de novembro de 1942, alemães e italianos invadem o território
francês, quebrando o Armistício, e Nice fica sob domínio italiano até 1943.
A Shoá
Os judeus
franceses acreditavam estar seguros e que não seriam perseguidos, mas estavam
enganados. Os anos seguintes foram de muito sofrimento. A França de Vichy
voluntariamente promulga, em 4 outubro de 1940, as primeiras leis contra os
judeus. O ‘Statut des Juifs”, que se baseava nas “diretrizes“ nazistas
já postas em prática na zona de ocupação alemã, impunha segregação racial e a
obrigatoriedade de que os judeus se identificassem como tal junto às
autoridades. Eles foram excluídos da vida pública e militar, da indústria e
comércio, das profissões liberais e das artes.
André
Jacob foi um dos milhares de judeus que obedeceram a determinação de se
registrar como judeu e perdeu o direito de exercer sua profissão. Sua esposa,
Yvonne, passava o dia em busca de algum trabalho para alimentar a família. Os
Jacobs passam a enfrentar a segregação cada vez maior decorrente das leis
anti-judaicas.
Em
novembro de 1942, Nice, como vimos acima, fica sob ocupação italiana. Apesar de
aliada de Hitler, a Itália de Mussolini se recusava a entregar judeus aos
nazistas, a despeito de repetidas exigências. Apesar do antissemitismo, a vida
dos judeus melhorara. Simone e seus irmãos frequentavam a escola e participavam
ativamente nas atividades do Escoteiros e das Bandeirantes. A situação em Nice,
e em toda Riviera Francesa, mudaria em setembro de 1943, quando após a
assinatura do armistício entre a Itália e os Aliados, as tropas italianas são
forçadas a se retirar. Os alemães, sob o comando de Alois Brunner, ocupam a
Côte d’Azur. Para os judeus, o perigo rondava cada esquina, pois para os
nazistas, tornara-se uma questão de honra pôr um fim na vida judaica na
Riviera.
Em março
de 1944, então com 16 anos, Simone vivia com sua professora de letras, Madame
de Villeroy. Usava o sobrenome Jacquiers numa tentativa de escapar às garras
nazistas. No dia 30 desse mês, quando estava com amigos no centro da cidade
comemorando o término dos exames de baccalauréat1,foi detida
por dois alemães em trajes civis. Foi levada ao Hotel Excelsior, quartel-geral
nazista e local de concentração dos judeus que seriam deportados. O restante da
sua família, que, até então, vivia escondida na casa de amigos não judeus, é
também preso pela Gestapo.
No dia 7
de abril de 1944, Simone, sua mãe e sua irmã Madeleine, foram enviadas para o
campo de Drancy no comboio número 71, no qual estavam, também, Anne-Lise Stern
e Marceline Rosenberg, que viriam a se tornar suas melhores amigas. De Drancy
foram despachadas em trens de gado para Auschwitz-Birkenau, onde chegaram no
dia 15 do mesmo mês. Seu pai e seu irmão Jean foram deportados para a Lituânia
no comboio 73 e ela jamais os reviu.
Assim que
chegou em Auschwitz, um prisioneiro que falava francês a alertou que ao ser
interrogada pelos nazistas devia dizer que tinha mais de 18 anos, quem sabe
assim ela conseguiria sobreviver à “seleção”.
Ela se
torna o prisioneiro número 78651, tatuado em seu braço, e teria que
“descarregar as pedras enormes que chegavam diariamente em caminhões e, com
elas, aplainar o solo”. Poucos sobreviviam muito tempo a essa tarefa.
Uma
prostituta que se tornara Kapo lhe salva a vida ao decidir transferi-la
para um anexo de Auschwitz. Disse-lhe que ela era “muito bonita para morrer”.
Simone disse que iria se mudar, na condição de que sua mãe e irmã Madaleine
pudessem acompanhá-la, o que de fato aconteceu. Em julho de 1944, Simone com a
mãe e a irmã Madeleine foram transferidas para Bobrek, perto de Birkenau. Nesse
ínterim, sua irmã Denise, então com 19 anos, que fazia parte de um grupo da
Resistência em Lyon, foi presa e, em 1944, deportada para Ravensbruck. Ela
conseguiu sobreviver.
Em
janeiro de 1945, pouco antes da libertação de Auschwitz pelas tropas soviéticas,
ocorrida no dia 27, os nazistas evacuaram o campo e enviaram os prisioneiros a
Bergen-Belsen, numa das chamadas “Marchas da Morte” durante as quais eles eram
forçados a caminhar longas distâncias em direção à Alemanha, expostos ao frio
extremo, sem roupas, comida, água ou descanso. Simone, sua mãe e sua irmã
contam-se entre os poucos que sobreviveram. Ao chegar em Bergen-Belsen, Simone
é indicada para trabalhar no refeitório. Sua mãe, muito enfraquecida, não
conseguiu resistir e morreu de tifo, em março de 1945. Tanto Simone quanto a
irmã Madeleine ainda estavam vivas quando os britânicos libertaram o campo, em
15 de abril de 1945.
Ao voltar
para a França ela estava pronta para revelar o que era Auschwitz, os horrores
vividos, mas tinha a impressão de que ninguém estava interessado em ouvir.
Nunca esqueceu, no entanto, o tempo em que ficou presa nos campos nazistas e
lutou para manter a viva a memória dos crimes nazistas. De 2001 até 2007 foi
presidente da Fundação pela Memória da Shoá. Ao deixar o cargo,
tornou-se Presidente de Honra. Em 22 de dezembro de 2004 aceitou retornar a
Auschwitz, com seus cinco netos, a convite do diretor da revista Paris Match,
Alain Genestar.
De volta
à França
Simone
chegou em Paris no dia 23 de maio de 1945. Assim como os outros sobreviventes
teria que enfrentar o duro desafio de reconstruir a vida. Foi alojada no Hotel
Lutetia, com outros sobreviventes dos campos, recebendo um documento de
repatriamento, roupas e comida. Foi também informada de que havia sido aprovada
nos exames de baccalauréat prestados antes de ser presa - a única de sua
turma a passar.
Ainda em
1945, ela entra na Faculdade de Direito e no Instituto de Ciências Políticas de
Paris. Em 1946, conheceu Antoine Veil, judeu, futuro Inspetor das Finanças e
empresário, durante umas férias numa estação de esqui. Foi amor à primeira
vista e Simone e Antoine se casam em 26 de outubro. Eles viveram juntos durante
67 anos, até o falecimento de Antoine, em 2013. O casal teve três filhos: Jean,
advogado; Claude-Nicolas, médico, e Pierre François, advogado e presidente do
Comitê Francês do Yad Vashem. Claude-Nicolas faleceu em 2002.
Em 1952,
ela fica abalada por mais uma perda dolorosa. Sua irmã Madeleine morre com o
filho Luc em um acidente de carro na estrada. Ela era a única pessoa com a qual
podia falar sobre os anos passados nos campos.
Carreira
em ascensão
Simone se
muda por algum tempo para Wiesbaden e depois para Sttugart, em função da
carreira de Antoine. Formada em Direito e em Ciências Políticas, ela revela ao
marido que não quer desistir de uma carreira, como sua mãe fizera, para ser
apenas dona de casa. Na época, apenas 40% das francesas trabalhavam e, ainda
menos, no círculo da burguesia parisiense.
Decide
entrar para a Magistratura, onde passa a ocupar cargos no alto escalão, até
chegar ao Ministério da Justiça, de 1957 a 1959. Seu primeiro passo em direção
à vida política foi participar do governo do primeiro-ministro René Pleven. Ela
representou a França na Sociedade Internacional de Criminologia, em 1959, e se
dedicou a lutar por reformas nas leis relativas à adoção, e a adultos com
necessidades especiais. Indicada como assessora no Gabinete de Pleven, era
encarregada do relacionamento com a imprensa e questões de leis civis e
judiciárias.
Em 1970
foi indicada secretária do Conselho Superior de Magistratura. Seu trabalho foi
reconhecido ao ser nomeada Cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito e membro do
Conselho da ORT da França e da Fundação da França.
Em maio
de 1974, Valéry Giscard d’Estaing, presidente recém-eleito, a escolheu como
ministra de Saúde no gabinete do primeiro-ministro Jacques Chirac. Durante seu
mandato, Simone Veil conseguiu que fosse aprovada pelo Parlamento a “Lei Veil”,
que descriminalizou na França a interrupção voluntária da gravidez. Na ocasião,
Simone teve que enfrentar uma oposição particularmente dura da Direita. Alguns
deputados chegaram a acusá-la de “apoiar o genocídio e de comportamento similar
ao dos nazistas”. No Parlamento, proferiu um emocionante discurso em que
revelou sua preocupação sobre os riscos enfrentados pelas mulheres que
realizavam abortos clandestinos, cujo número aumentara drasticamente na França.
O projeto de lei foi aprovado na íntegra e a “Lei Veil” entrou em vigor em
1975. Após esse famoso embate político, o jornal Nouvel Observateur
concede-lhe o título de “Revelação do Ano”.
Em 1979,
ela mesmo fumante, encabeça a luta contra o tabagismo no país, impondo serias
restrições. Manteve até julho daquele ano a pasta da Saúde, quando abandonou o
governo para participar, a pedido de Giscard d’Estaing, das eleições do
Parlamento Europeu. Simone presidiu o Parlamento Europeu de 1979 até 1982, na
primeira vez em que seus integrantes foram eleitos por sufrágio universal. Na
época, o Parlamento tinha poucos poderes, mas Simone lhe deu visibilidade com
sua atuação na área de direitos humanos.
Em março
de 1980, recebe o Prêmio Athenae concedido pelo Fundo Aristóteles Onassis por
sua contribuição para a reaproximação dos povos e pelo respeito à dignidade
humana. Em 2005 é a vez do Prêmio Príncipe das Astúrias para a Cooperação
Internacional.
Volta a
ocupar um cargo no governo da França, em março de 1993, quando é nomeada
ministra de Estado dos Assuntos Sociais, no governo de Édouard Balladur, onde
permanece até julho de 1995. Foi membro do Conselho Constitucional entre 1998 e
2007.
Em 31 de
outubro de 2007 publica a autobiografia “Uma vida”, traduzida para mais de 15
idiomas. Somente na França foram vendidos mais de 550 mil exemplares.
Em 2008,
é eleita para uma cadeira na Academia Francesa de Letras, uma distinção rara
entre os políticos do país. Sobre sua espada de Imortal, criada pelo escultor
tcheco Ivan Theimer, foram gravados o número que lhe fora tatuado em Auschwitz
– 78651 - e o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” ao lado da expressão “in
Varietate concordia”, unidos pela diversidade.
Após a
morte de seu marido Antoine, em 2013, e de sua irmã Denise Vernayem, no mesmo
ano, Simone se afasta da vida pública. Ainda assim, manteve-se no coração dos
franceses. Em 2016 ainda aparecia nas pesquisas como a terceira personalidade
preferida do país.
“Sou
judia”
No artigo
“Sou judia: o Kadish será recitado diante do meu túmulo”, Simone
escreveu em 2005: “Nasci e cresci no seio de uma família francesa de longa
data, fui francesa sem nenhum questionamento. Mas ser judia, o que isto
significava tanto para mim quanto para meus pais, já que, ambos agnósticos –
como já o tinham sido meus avós –, a religião estava totalmente ausente de
nosso lar? Do meu pai pude aprender que sua ligação com o judaísmo estava mais
relacionada ao conhecimento e à cultura que os judeus adquiriram ao longo dos
séculos, em épocas em que muito poucos tinham acesso aos mesmos. Haviam
permanecido como Povo do Livro, fossem quais fossem as perseguições, a miséria
e a vida errante. Para minha mãe, o judaísmo era uma questão de um compromisso
com valores com os quais, ao longo de sua longa e trágica história, os judeus
jamais haviam deixado de lutar: a tolerância, o respeito dos direitos de cada
um e de todos, a solidariedade. Ambos morreram no exílio, deixando-me como
única herança os valores humanistas que, para eles, o judaísmo representava.
Desta herança não me é possível dissociar as lembranças sempre presentes, de
certa forma obsessiva, dos seis milhões de judeus exterminados pelo simples
fato de serem judeus. Seis milhões dentre os quais meus pais, meu irmão e
inúmeros familiares. Não posso me separar deles. Isto é suficiente para que,
até a minha morte, meu judaísmo seja imprescritível.
O Kadish
será recitado diante de meu túmulo. Sou judia”. Seus filhos atenderam sua
vontade.
Simone
faleceu em 30 de junho de 2017, sexta-feira, aos 89 anos, em sua residência em
Paris. Segundo seu filho Pierre-François, a última palavra que pronunciou antes
de morrer foi “obrigado”. Simone foi enterrada no Cemitério de Montpanasse, em
Paris. Diante de seu túmulo, seus filhos Jean e Pierre-François recitaram o Kadish.
A cerimônia fúnebre foi conduzida pelo grão-rabino da França, Haim Korsia. Foi
muito simples, na presença apenas de pessoas muito próximas que ali foram para
prestar sua última homenagem à uma mulher que, após ter passado os horrores dos
campos de concentração nazistas, deixou sua marca pessoal na história e na
política da França. Sobre ela o Journal Dimanche escreveu: “Numa época
em que a política só inspira desconfiança, Simone Veil será sempre lembrada
como um exemplo de coragem e dignidade tanto pela sua trajetória pessoal quanto
profissional”.
BIBLIOGRAFIA
Veil, Simone e Black,Tamsin, A Life . Kindle edition
Deloeuvre, Guy, Simone Veil: Destin. Kindle edition
Jactance,
Assoumou Ondo, Ce que serait devenue la femme française sans Simone Veil.
Kindle edition
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